segunda-feira, 29 de março de 2010

Ainda sobre os modelos de Justiça Administrativa...

O nascimento, crescimento, desenvolvimento e estabilização do Contencioso Administrativo, na França e no Reino Unido, foi de certa forma complexo, sendo uma das principais batalhas no Direito desses países nos últimos séculos. Seguindo o pensamento do Prof. Vasco Pereira da Silva, podemos analisar as semelhanças e contrastes da evolução do Contencioso Administrativo, segundo um modelo francês e um modelo britânico, recorrendo à tripartição metafórica de fases essenciais dessa mesma evolução, nomeadamente: a fase do “pecado original”, a fase do “baptismo” e a fase da “confirmação”.

Quanto à fase do Pecado Original:


Em França, o nascimento do Contencioso Administrativo fica, sem dúvida, alguma marcado pela negação dos direitos dos particulares (recorde-se a importância do Acórdão Blanco, de 1873) e por uma errada interpretação do princípio da separação de poderes que conduziu a uma confusão entre o poder de administrar e de julgar. Nesta medida, a promiscuidade entre as tarefas do administrador e do juiz, origina que o juiz seja um administrador e o administrador um juiz, sendo este último classificado na doutrina do Prof. Vasco Pereira da Silva, como um “juiz doméstico” ou, noutras palavras, num “juiz de trazer por casa”. Perante isto, na França a “justiça administrativa nasceu dentro da administração”, sendo que o Contencioso Administrativo vê o seu nascimento dotado do que poderíamos designar como um claro e nítido “vício de influência intrínseca” entre a Administração e a Justiça. Temos assim, um Estado designado por “todo-poderoso” que se esconde por detrás da Administração e do poder que esta, embutida na Justiça, consegue ter.

Na Inglaterra, acontece algo bem diferente. Desde logo, o princípio da separação de poderes é visto de outra forma, onde cada poder é dotado de autonomia e independência, limitando-se de forma mútua. Não havendo uma integração em qualquer entidade superior. Assim, a Administração estava necessariamente submetida aos tribunais e às regras do direito comum. Perante isto, é nítido que, no Reino Unido, o Contencioso Administrativo não nasceu sobre a índole da promiscuidade. Por outras palavras, a Inglaterra não sofreu dos “traumas de infância que atormentaram a França”.

Quanto à fase do Baptismo:


Ligada necessariamente ao Estado Social, esta nova fase, vai conferir à França um rompimento com a promiscuidade do passado, libertando a Administração da Justiça, concedendo-lhe uma natureza de jurisdição autónoma. Estamos perante aquilo que o Prof. Vasco Pereira da Silva intitula como o “duplo milagre”: Estado passa a ter que se submeter ao Direito e a instituição que nasceu para proteger a Administração do controlo dos Tribunais (leia-se: Conselho de Estado) passa de um “quase-tribunal” a um verdadeiro tribunal. O fim passa a ser a garantia dos direitos dos particulares e não a defesa da Administração. É dado um passo importante depois de cometido aquele pecado original, é dado o primeiro passo para o “perdão.”

No Reino Unido, a história é outra. Como já foi referido este não teve “traumas” de uma “infância difícil” como aconteceu com a França, mas desenganem-se quem julgava que a evolução de todo o seu Contencioso Administrativo tinha sido saudável e sem problemas. Os problemas britânicos começaram com a passagem da Administração Agressiva para a Administração Prestadora, originando-se, essencialmente, problemas de afirmação no que toca ao seu poder administrativo. Na medida em que a introdução do Direito Administrativo, no Reino Unido (leia-se: os poderes públicos britânicos já criavam e aplicavam Direito Administrativo, antes de o saberem.), conduziu a uma confusão das funções estaduais, no que respeita às relações entre a Administração e a Justiça, nomeadamente através de uma concepção ampla de Contencioso Administrativo que envolve a intervenção de órgãos administrativos especiais com os tribunais (note-se: o sistema não sofreu complicações por causa da criação de tribunais especiais dependentes da administração como aconteceu em França.)

Perante isto, e muito sucintamente, podemos estabelecer a diferença desta maneira: na França, verificou-se um baptismo com a transferência de órgãos administrativos especiais em verdadeiros tribunais, enquanto na Inglaterra, não houve pecado original, mas nasceram entidades administrativas especiais encarregadas de fiscalizar a Administração, contudo, cabe aos tribunais comuns o “poder supremo” de decisão. Em suma, são os tribunais especiais (na França) e comuns (na Inglaterra) que passam a controlar a administração.

Quanto à fase da Confirmação:


Concomitantemente com a reafirmação da natureza jurisdicional do Contencioso Administrativo, é nesta fase que se dá a superação de todos os traumas através dos fenómenos da Constitucionalização e Europeização.

Na França, onde se deu o mais longo percurso até à jurisdicionalização plena do Contencioso Administrativo (mais de 2 séculos), é o Conselho Constitucional que reconhece e consagra o Contencioso Administrativo como tarefa de verdadeiros tribunais e não de órgãos dependentes da Administração. Por outro lado, a europeização deu um imenso contributo decisivo para superar os resquícios finais dos traumas, levando a uma tutela plenamente jurisdicionalizada e subjectivada. Destaca-se o papel da jurisprudência europeia e o regime da tutela cautelar urgente como novidades trazidas pela europeização.

No Reino Unido, a dimensão constitucional apenas foi atingida nos anos 70, através do crescimento intenso de processos relativos ao controlo judicial das decisões das autoridades públicas, conduzindo à sua consideração como parte integrante da Constituição material. No que toca à europeização, tal como na França, verificou-se uma influência decisiva do Direito Europeu no Contencioso Administrativo, sofrendo os mesmos efeitos.

Posto isto e analisado a génese do Contencioso Administrativo Francês e Inglês tornou-se claro que, apesar de uma infância diferente e afastada, os dois modelos viveram a puberdade e a vida adulta em caminhos cada vez mais próximos, muito por culpa das influências europeias.

Cristiano Dias, Subturma 8, nº16570

P.S.: O facto de ultrapassar o número máximo de caracteres, não foi possível colocar este trabalho sob forma de comentário em resposta à respectiva tarefa.

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