segunda-feira, 29 de março de 2010

O Rei (ou a Rainha?) vai nu.

É grande a especulação teórica à volta da distinção entre dois sistemas de Direito Administrativo : o sistema judiciário também designado por sistema Anglo-Saxónico , e o sistema executivo ou de tipo francês, sendo ambos assim designados pelo Prof. Freitas do Amaral.
Na sua essência, aquilo que os distingue, a priori, é o modo como a actuação da Administração é fiscalizada, estando no primeiro caso sujeita à jurisdição dos tribunais comuns , e no segundo, sujeita à fiscalização dos Tribunais Administrativos, especificamente criados para esse mesmo efeito.
Estas diferenças serão com certeza notadas pelo observador mais desatento, no entanto, aquilo que separa estes dois sistemas, para além do Canal da Mancha, são conceitos mais díspares que se nos revelam uma vez colocada a obra-prima no aparelho de raio-x , ou como diria o Prof. Vasco Pereira da Silva, uma vez colocado o sistema no divã do psicanalista. Como o objectivo que aqui nos move não é o de descrever minuciosamente cada um dos sistemas administrativos aqui em presença, mas o de descortinar aquilo que perigosamente os aproxima, vamos começar por vamos começar por fazer uma breve descrição histórica sobre cada um deles, a fim de avançarmos depois para o confronto de ideias que aqui pretendemos expor.
Assim sendo, na diferenciação entre estes dois sistemas, há duas notas diferenciadoras fundamentais a reter, que vão fazer com que todas as outras diferenças existentes entre os dois sistemas sejam consequências das duas primeiras. A primeira distinção a apontar será a diferente interpretação que cada sistema faz do princípio da Separação de Poderes
, a segunda no conceito de Estado presente em cada um destes ordenamentos, embora no caso inglês o conceito prime mais pela ausência.
No que diz respeito à Separação de Poderes, parafraseando o Prof. Freitas do Amaral poderíamos dizer que é das divergências existentes em relação à sua interpretação que resultam “duas espécies do mesmo género” de sistemas adiministrativos . De facto, em França após a revolução de 1789, que teoricamente derrubou o Ancien Regime, e com ele todo o despotismo e arbítrio que o caracterizava, procurando a todo o custo impor a ideologia liberal que preconizava, levou o princípio da Separação de Poderes ao extremo de deturpar o seu significado. Essa preocupação de fazer valer a Separação de Poderes até às últimas consequências, reflectiu-se na concepção de que a Administração não poderia estar sujeita à jurisdição dos tribunais judiciais porque: “ Julgar a Administração é ainda administrar”, esta era a concepção de alguns dos magistrados da época liberal, como Thouret ou Ricard de Nimes, que curiosamente tinham transitado do Antigo Regime.
Esta interpretação do princípio da Separação de Poderes, que depois vai ter implicações em toda a organização administrativa de tipo francês ou continental ( também assim designado porque o modelo francês se estendeu depois a muitos a países da Europa continental ) , as suas raízes remontam, como já aludimos antes ao Antigo Regime, uma vez que durante a sua vigência, a promiscuidade entre o poder executivo e o poder judicial tinha deixado as suas marcas, tentando agora proceder-se a uma solução de ruptura com o passado, ainda que infrutífera, uma vez que , como veremos ela desembocou numa situação de continuidade sob o manto diáfano da salvaguarda da Separação de Poderes levada ao seu extremo. Isto acontece porque, apesar da necessidade de mudança e de ruptura, a solução adoptada passou pela criação dos Tribunais Administrativos, como órgãos da Administração que tinham como função fiscalizar a sua actuação e julgá-la… . Aquilo que era suposto ser um remédio acabou por agravar o problema, levando a novas soluções marcadas pela injustiça e pela desigualdade , recorde-se o trágico Acórdão Blanco, que vaticina um inicio difícil e pouco heterodoxo para o Direito Administrativo.
Embora esta situação evolua bastante ao longo dos tempos, no sentido de aperfeiçoar o sistema equilibrando os pratos da balança no sentido favorável aos particulares, com a fase da judicialização, que marca o corte do cordão umbilical dos Tribunais Administrativos em relação à Administração, não podemos esquecer que esta interpretação algo extremista da Separação de Poderes vai ter grandes implicações e marcar uma cisão em relação aos sistemas de origem Anglo - Saxónica.
Por outro lado, é também de referir a diferente concepção de Estado nestes dois ordenamentos, como bem ilustra Nigro : “os institutos da justiça administrativa aperfeiçoam o Estado Administrativo, pois completam o estatuto especial da Administração” . É esta a ideia que está subjacente ao sistema continental a ideia de um Estado unificador, cuja actuação é necessário “proteger” ou “facilitar” em nome do interesse público, e por isso ele deve ter um estatuto especial face aos particulares; no sistema anglo-saxónico esta ideia não está patente na sua base, a ideia de Estado tal como nós a concebemos não existe, podendo quanto muito, ter algumas similitudes com o conceito de Coroa, como refere a expressão de Allen: “ The state is the crown”. Desde muito cedo que “a Coroa” está submetida ao poder jurisdicional dos tribunais comuns e vinculada ao cumprimento das suas funções tendo como limite o respeito pelos direitos dos particulares. Tal sistema também colhe diversas influências históricas como Magna Charta (1215) ou a Bill Of Rights (1689), entre outros pontos importante da história que foram submetendo o Rei e a Administração à jurisdição comum, sendo-lhe aplicável a “common law of the land”.
Mais recentemente, já no século XX alguns autores britânicos dos quais destacamos Dicey, criticaram o sistema francês, por contraposição ao sistema britânico, com o argumento de que aquele não tutelaria de forma satisfatória os direitos dos particulares face à Administração.
No sistema anglo-saxónico, não estavam de facto presentes alguns dos aspectos que permitiam caracterizar a Administração de tipo continental como “autoritária”. Neste sistema, a Administração Pública não gozava do benefício da execução prévia das suas decisões por autoridade própria, como acontecia no sistema francês , devendo as suas decisões ser mandadas executar por uma sentença de tribunal comum. Do mesmo modo que, os particulares que vissem os seus direitos violados por uma actuação da Administração, poderiam recorrer, no sistema anglo-saxónico, a um tribunal superior o King´s Bench, solicitando um mandato (writ) ou um direito (order) , para que Administração praticasse ou se abstivesse de praticar certo acto lesivo dos direitos do particular. Por seu turno, no direito francês o particular teria de fazer valer os seus direitos num tribunal administrativo, sem independência face à administração, o que, segundo o autor punha em causa o principio o Estado de Direito, uma vez que a Administração era tratada de forma especial face ao particular.
A esta argumentação do autor britânico procura responder Maurice Haurriou, dizendo que, não pode ser apenas com base na existência de tribunais administrativos que se pode defender a inexistência de um Estado de Direito, é preciso ter uma visão de conjunto de todo o ordenamento, além de que apesar do seu inicio tortuoso os tribunais administrativos tinham já evoluído a um nível capaz de defender cabalmente os direitos dos particulares.
Chegados a este ponto da nossa discussão cabe agora perguntar: Deverá proceder a crítica de Dicey e defender-se que o sistema de tipo francês é pouco eficaz na defesa dos direitos dos particulares face à Administração, sendo tendencioso ou parcial?
Serão, hoje em dia, estes dois sistemas totalmente opostos ou caminham para uma certa convergência?
Se em relação à primeira questão entendemos que essa argumentação não é de acolher,; já em relação à segunda a nossa orientação inclina-se no caminho da positividade.
De facto, pensemos que o Rei, ou melhor a Rainha, vai, com todo o respeito, despida de razão quando entende que o seu sistema administrativo é o palatino da defesa dos direitos dos particulares. Assim não é porque, se no inicio do século XX nós podíamos ainda sublinhar algumas diferenças na sua tutela, ao longo desse século elas esbatem-se, basta pensarmos na criação em Inglaterra de muitos “Administrative Tribunals”, que embora não sejam tribunais no sentido de tribunais administrativos existentes no nosso ordenamento, são ainda assim órgãos administrativos, aos quais cabe decidir questões de direito administrativo, cabendo recurso destas para os tribunais comuns. Da mesma maneira que, na transição do Estado Liberal para o Estado Social também tenham surgido em Inglaterra numerosas leis administrativas .
Ao mesmo tempo que em Inglaterra nos deparávamos com este movimento “Administrativizador”, em França , bem como em outros sistemas de matriz francesa assistíamos à “fuga para o direito privado” de muitas das àeras que classicamente haviam estado sempre sob o domínio administrativo; bem como à perca de terreno e de protagonismo por parte da Administração autoritária, com a introdução de mecanismos de tutela dos administrados como a suspensão da execução de decisões administrativas até que o tribunal se pronuncie sobre a sua legalidade.
Por último, resta-nos concluir dizendo que no futuro parece adivinhar-se uma maior convergência entre estes dois sistemas, uma vez que, se já se notou uma certa aproximação com a jurisdicionalização do sistema executivo, maior será a proximidade com as preocupações de harmonia comunitária que norteiam o a fase da europeização do Direito Administrtivo.

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