quinta-feira, 1 de abril de 2010

Tarefa 1

Até aos séculos XVII e XVIII, vigorou na Europa o chamado sistema tradicional de contencioso administrativo, sendo que este sistema veio a influenciar decisivamente os “primeiros anos de vida” do contencioso administrativo, principalmente em França, como veremos adiante.

Durante séculos e até ao final do absolutismo, “reinou” então na Europa o sistema tradicional da justiça administrativa, sem separação de poderes e sem Estado de Direito. Quanto ao primeiro aspecto, não é demais relembrar que o Rei (e restantes autoridades) era simultaneamente o supremo administrador e supremo juiz, isto é, existia uma indiferenciação total das funções administrativa e jurisdicional. Relativamente ao segundo ponto, vivia-se uma época em que os particulares eram tidos meros objectos nas mãos e à disposição do poder executivo, dado que à não subordinação da Administração Pública à lei, estava associado um sistema de fracas garantias jurídicas dos cidadãos face à Administração.

Contudo, não se pode negar que mesmo nesta época já existiam certas regras com carácter jurídico que vinculavam e “controlavam” a actuação da Administração, só que estas eram regras avulsas às quais faltava necessariamente uma ideia de sistema, e as poucas regras existentes podiam ser afastadas por razões de conveniência administrativa, dadas as particularidades da própria actuação administrativa que não pode, sob quaisquer circunstâncias, ser comparada com a actuação e relação de um particular com um particular.

Com efeito, é a concepção de Estado do Antigo Regime que vai influenciar decisivamente a concepção de contencioso administrativo uma vez que há que, em primeiro lugar, concentrar e unificar o poder do Estado, e só num segundo momento, quando o Estado já for suficientemente forte, poderá haver uma organização política que garanta a liberdade e os direitos dos cidadãos.

Este panorama foi alterado a partir de 1688, com a grande Revolução em Inglaterra e com a Revolução Francesa em 1789, apesar de os “cortes com o passado” não terem sido tão radicais como à partida se poderia pensar, nomeadamente em França. O papel destas revoluções liberais não pode, todavia, ser menosprezado. Assim, passou-se lentamente de um sistema administrativo tradicional, para os sistemas administrativos modernos, que se baseiam na separação de poderes e no Estado de Direito, ainda que a interpretação destes dois princípios não tenha sido, principalmente em França, a mais correcta e adequada à protecção dos interesses e direitos dos cidadãos.

Começando, em termos cronológicos, com o sistema de tipo britânico (ou de administração judiciária) verificamos que a sua evolução é muito menos conturbada do que a do sistema francês. A separação de poderes implicou então que cada um dos poderes fosse tomado como autónomo e independente, limitando-se reciprocamente. Assim, a administração estava subordinada aos tribunais e às regras de direito comum. Todavia, mais tarde, e pela evolução natural das “coisas”, compreendeu-se que a sujeição, na teoria perfeita, da Administração aos tribunais e regras de direito comum, levava, na prática, a que o sistema apresentasse um conjunto de condicionamentos e limitações que podem pôr em causa a eficácia do sistema, assim se explicando o surgimento posterior de “órgãos administrativos especiais” (os administrative tribunals), a quem são atribuídas tarefas jurisdicionais no que diz respeito ao controlo da actividade administrativa, mas também tarefas administrativas propriamente ditas, por isso, a natureza mista destes órgãos – meio administrativos/meio judiciais.

O próprio Rei ficou impedido de intervir em matérias de cariz contencioso, ficando ele próprio subordinado ao Direito e aos tribunais (comuns). Se o próprio Rei estava subordinado aos tribunais, natural se torna que a Administração (que em Inglaterra é largamente descentralizada) também estivesse sujeita aos tribunais comuns (courts of law). Segundo o Prof. Marcello Caetano não faria sentido isentar a administração desta sujeição aos tribunais comuns dado que “só há uma medida de direitos para todos […], um só sistema para o Estado e para os particulares”. Não devem, por isso, haver soluções distintas para as situações que apenas envolvam os particulares e para aquelas em que esteja também envolvida a administração. Em consequência verificamos que, por via de regra, a administração não dispõe de prerrogativas ou privilégios de autoridade pública e se existirem, tais prerrogativas são vistas como excepções ao rule of law e não como um sistema de regras de Direito Administrativo.

O elemento principal (e distintivo) deste sistema será, todavia, a impossibilidade de a administração executar as suas decisões por autoridade própria, isto é, as decisões unilaterais da AP não têm força executória própria, o que quer dizer que se o particular não as acatar voluntariamente, elas não podem ser coactivamente impostas sem uma intervenção do poder judicial (sendo que este poder está “desligado” dos interesses administrativos).

De tudo o que foi exposto decorre que os particulares dispõem de um grande conjunto de garantias contra ilegalidades e abusos da administração.

Passando agora ao sistema francês (ou de administração executiva), que influenciou de forma decisiva o “nosso contencioso”, verificamos que a Revolução Francesa, apesar de ter tido um papel importante, não trouxe assim tantas rupturas, nomeadamente nos primeiros anos seguintes, ao nível do contencioso administrativo.

Assim, o contencioso administrativo foi concebido como “privilégio de foro” da Administração, que existia não tanto para garantir a protecção dos interesses dos particulares, como para garantir a defesa dos poderes públicos. Há aqui uma ligação indesmentível entre as tarefas administrativas e de julgar, ao mesmo tempo que se proibia a interferência dos tribunais judiciais na esfera da administração, em nome da separação de poderes.

Contudo, a interpretação feita pelos revolucionários franceses do referido princípio foi errada, uma vez que entenderam que “julgar a administração é ainda administrar”, mas julgar a administração já não seria julgar. Logo, em nome de uma ideia de separação de poderes criou-se (ou manteve-se) uma confusão entre o poder de julgar e o de administrar. Esta concepção da separação de poderes é “apoiada” por Montesquieu para quem o poder judicial pune os crimes ou julga os litígios dos particulares, logo os litígios administrativos nunca poderiam pertencer aos tribunais.

Os revolucionários procuraram também com a criação de um contencioso especial reagir contra a actuação dos tribunais numa fase terminal do Antigo Regime, a actuação destes tribunais foi tal que se chegou a falar num “governo de juízes”, e assim se evitava que os tribunais pudessem colocar entraves à actuação da Administração, que agora se encontrava em “boas mãos”.

A criação de órgãos administrativos especiais, destinados ao julgamento de litígios administrativos, vem também do Antigo Regime, e é a tentativa de proteger e defender a administração que vai justificar a criação de órgãos administrativos especiais, como o Conselho de Estado (inspirado no Conselho do Rei, durante o Antigo Regime), onde mais uma vez se denota que o contencioso administrativo é também uma herança do Antigo Regime. As próprias técnicas e instrumentos jurídicos da administração mantêm-se antes e depois da Revolução.

Com efeito, estamos perante uma fase do contencioso em que o administrador e juiz tenderão a coincidir, daí que o Prof. Vasco Pereira da Silva fale no “pecado original” da ligação da administração à justiça, havendo consequentemente uma isenção judicial da administração.

O período do modelo do administrador-juiz durou muito tempo, tendo tido diversas fases, sendo que a mudança de sistema para o dos tribunais administrativos ainda não chegaria (isto pelo menos até 1889, ano do Acórdão Cadot). Contudo, a jurisdicionalização plena da jurisdição administrativa não se pode reconduzir a um único momento, ela resulta de um longo processo evolutivo que se caracteriza pelo progressivo afastamento da justiça administrativa da administração propriamente dita para se aproximar dos tribunais (ainda que esses tribunais sejam de jurisdição administrativa). É o aprofundamento da noção de Estado de Direito, associada ao Estado social, que vem exigir que os diferendos entre a administração e os particulares sejam julgados por verdadeiros tribunais.

O sistema francês, ou de administração executiva, distancia-se do britânico principalmente no que diz respeito ao privilegio da execução prévia, que permite à administração executar as suas decisões por autoridade própria, sem intervenção de um órgão judicial como acontece em Inglaterra, isto é, a administração dispõe de poder para, por si, empregar meios coactivos para o respeito da sua decisão.

Segundo o Prof. Freitas do Amaral podemos distinguir o sistema britânico e o francês com base em vários traços específicos de cada um. Em Inglaterra temos uma unidade de jurisdição já que a Administração está sujeita aos tribunais comuns e os tribunais têm amplos poderes de injunção face à Administração, que lhe está subordinada aos tribunais como a generalidade dos cidadãos, sendo que o direito aplicável nos tribunais é direito comum. E as decisões administrativas não têm força executória própria. Já em França há (em resultado de uma longa evolução) uma dualidade de jurisdições uma vez que a Administração está hoje sujeita aos tribunais administrativos, e o direito aplicável é o Direito Administrativo, que é direito público, sendo que os tribunais só podem anular decisões ilegais ou abusivas ou condenar a administração no pagamento de indemnizações. As decisões da administração têm autoridade própria, dispensando a intervenção do tribunal.

Resumindo, estamos na presença de dois modelos, e como modelos que são, estão sujeitos à evolução dos tempos, e eles próprios têm caminhado no sentido de algumas aproximações. Há, assim, dois sistemas que, apesar de diferentes, foram caminhando no sentido de uma progressiva harmonização, a qual se deve, em grande medida, à integração horizontal das ordens jurídicas dos Estado membros. Com efeito, esta convergência de sistemas de contencioso administrativo – sem nunca pôr em causa as respectivas especificidades – é o ponto de partida de um novo Processo Administrativo Europeu, que esperamos possa romper completa e decisivamente com os “traumas do passado”, aproveitando o melhor de cada sistema de forma a permitir uma efectiva realização da Administração e sua justiça, bem como a promover, qualitativa e quantitativamente, as garantias e direitos dos particulares, uma vez que estes ainda se poderão encontrar, “aqui e ali”, em situação de inferioridade injustificada face à Administração.


Inês Santos Morais (nº 16641)

Turma A

Subturma 12


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