terça-feira, 30 de março de 2010

Legitimidade Processual

Tendo como pano de fundo o modelo francês, constata-se que, nos seus tempos primórdios, o contencioso administrativo era de tipo objectivo, ou seja, pretendia apenas a verificação da legalidade de uma determinada actuação administrativa.
Esta natureza objectiva tinha repercussões ao nível da posição que tanto particulares como Administração ocupavam no processo administrativo. Assim, particulares e administração eram tidos como "meros colaboradores" do tribunal na defesa da legalidade e do interesse público. o que significava que não podiam actuar em juízo com a finalidade de defesa de direitos ou interesses próprios.
Segundo esta lógica objectivista o particular não era um sujeito processual, mas apenas um "objecto do poder soberano", não tinha direitos subjectivos perante a Administração. Esta posição ocupada pelo particular era consequência de uma "concepção actocêntrica" do Direito Administrativo, que visava unicamente as manifestações do poder da Administração .
A Administração era considerada, de acordo com esta lógica, a "autoridade recorrida", que tinha como propósito auxiliar o tribunal no estabelecimento da legalidade e do interesse público.
Esta lógica clássica foi afastada, entre nós, pela Constituição de 1976 e, mais preponderantemente, pela Reforma de 1984/85. Através da jurisdicionalização do contencioso administrativo obteve-se uma lógica subjectivista, segundo a qual particular e administração são partes no processo, defendem as suas posições individualmente consideradas perante um juiz que é terceiro nessa relação jurídica administrativa (novo paradigma do Direito Administrativo). Para além disso, é de considerar que se consagra, nesta nova fase do crescimento do contencioso adminstrativo, uma igualdade entre administração e particular (art. 6º CPTA), que é corolário da alteração do ênfase que é dado ao acto administrativo. A relação entre administração e particular não é uma relação de poder , por isso existe uma igualdade efectiva destes sujeitos na participação processual. Consagra-se uma ideia de processo administrativo de partes.
É, exactamente, esta ideia que está subjacente às regras comuns da legitimidade (arts. 9.º e ss CPTA). Esta opção de estabelecer, na Parte Geral do Código, um regime geral em matéria de legitimidade é inovadora.
De acordo com a lógica clássica a legitimidade constituía o critério de acesso ao juiz e esta regra era determinada em razão do interesse directo, pessoal e legítimo.
Diferentemente, hoje, no CPTA determina-se que a legitimidade processual decorre da alegação da posição de parte na relação material controvertida (art. 9.º CPTA).
No número 1 do referido preceito consta o regime geral em matéria de legitimidade activa, o autor é parte legítima em razão dos direitos subjectivos ou das posições de vantagens que alega ser titular na relação jurídica administrativa - basta uma alegação plausível.
Quanto à questão da qualificação das posições jurídicas substantivas dos particulares face à administração, o Prof. Vasco Pereira da Silva entende que não se justifica a distinção clássica entre direitos subjectivos, interesses legítimos e interesses difusos, é preferível um tratamento unitário das posições jurídicas dos indivíduos perante a administração.
Essa pretensa distinção das categorias referidas, na prática, leva a resultados idênticos: a lei pode atribuir um direito subjectivo mediante uma norma jurídica que expressamente qualifica como tal essa posição de vantagem; ou pode estabelecer um dever da administração no interesse do particular, o que origina uma posição de vantagem para o particular; ou, ainda, a ordem jurídica pode atribuir um direito subjectivo mediante uma disposição fundamental. Em todas as situações, apesar das diferentes técnicas jurídicas utilizadas, estamos perante posições substantivas de vantagem, que visam a satisfação de interesses individuais.
Chegados a este ponto, cumpre fazer referência à existência de regimes especiais no âmbito da legitimidade, como resulta da ressalva expressa no art. 9.º, n.º1 CPTA.
Assim, uma disposição especial encontra-se, desde logo, no número 2 do preceito referido. Nessa disposição legal verifica-se uma extensão da legitimidade processual, que tem como objectivo o exercício por parte dos cidadãos do direito de acção popular para "defesa de valores e bens constitucionalmente protegidos". Pois, para além da função subjectiva, o Contencioso Administrativo, num Estado de Direito, também tem de desempenhar uma função objectiva de tutela da legalidade e do interesse público. Essa função é realizada de forma imediata pela intervenção , do que o Prof. Vasco Pereira da Silva chama de actor público e actor popular.
A acção popular permite a qualquer cidadão, no exercício dos seus direitos civis e políticos, tanto dirigir-se aos tribunais administrativos em defesa dos valores elencados no art.9.º, n.º2 CPTA, como pedir a condenação da administração a abster-se de realizar certas operações materiais. A remissão feita pelo artigo referido anteriormente ("nos termos previstos n lei") tem em vista a Lei 83/95 de 31 de Agosto, nomeadamente os seus arts. 2.º e 3.º, que densificam o critério de legitimidade, e os arts. 13.º e ss, que estabelecem as disposições a aplicar aos processos intentados por actores populares.
Diferentemente do que considera o Prof. Vasco Pereira da Silva, o Prof. Mário Aroso de Almeida entende que o diploma legal referido supra introduz um conjunto de adaptações ao modelo de tramitação normal.
A acção pública constitui, nos nossos dias, o principal poder de intervenção processual do Ministério Público, doravante MP, no contencioso administrativo.
Para um melhor entendimento deste tema da legitimidade no contencioso administrativo é necessário, ainda, fazer uma breve referência a outras disposições especiais que resultam da ressalva do art.9.º/1 CPTA.
Primeiramente, refere-se o art.40.º CPTA, este artigo procede a um significativo alargamento da legitimidade para a propositura das acções sobre contratos, aquelas que digam respeito à invalidação dos contratos (n.º 1) e as outras que tenham que ver com a execução do contrato (n.º2). A análise detalhada das alíneas deste artigo não deve ser tratada no âmbito deste trabalho.
Ao referir-se no art.9.º, n.º1 CPTA "no âmbito da acção administrativa especial" tem-se em vista quatro preceitos do Código - arts. 55.º, 68.º, 73.º e 77.º.
O artigo 55.º refere oito categorias de pessoas e entidades legitimadas a impugnar actos administrativos, pedindo a sua anulação ou a declaração da sua nulidade. Este preceito suscita, essencialmente uma questão:

-o que se deve entender por "interesse directo e pessoal"

A utilização desta fórmula na al. a), do n.º1 do art. 55º aponta para a conclusão de que a legitimidade individual para impugnar actos administrativos não tem de se basear na ofensa de um direito ou interesse legalmente protegido, mas basta-se com o facto de o acto estar a provocar, no momento em que é impugnado, consequências desfavoráveis na esfera jurídica do autor, a anulação ou declaração de nulidade desse acto traz ao autor uma vantagem directa.

Ao contrário da fórmula tradicional, actualmente já não se faz referência ao carácter legítimo do interesse pois esse requisito não possui real autonomia. Já quanto aos requisitos de carácter "directo" e "pessoal" deve ser feita uma distinção. De acordo com o entendimento do Prof. Mário Aroso de Almeida apenas o segundo carácter diz respeito ao pressuposto da legitimidade, exige-se que a utilidade que o interessado pretende obter com a acção seja uma utilidade pessoal, que ele reivindique para si próprio.

Por seu turno, o carácter "directo" do interesse diz respeito à questão de saber se existe um interesse actual em pedir a anulação ou declaração de nulidade daquele acto. Trata-se mais, na opinião do referido Professos, de saber se o particular tem efectiva necessidade da tutela judiciária, isto é, tem mais a ver com o seu interesse em agir. Mas, este interesse em agir, no plano do Contencioso Administrativo, não é expressamente autonomizado.

Ainda em sede de acções adminstrativas especiais é de referir o art.68.º que elenca as pessoas e entidades legitimadas a pedir a condenação da Administração à prática de actos administrativos recusados ou omitidos.

Quanto a este preceito é importante chamar a atenção para o facto de, ao contrário do que sucede na impugnação de actos administrativos, para a condenação da administração à prática de actos administrativos recusados ou omitidos, o CPTA não se basta com a invocação pelo autor da titularidade de um interesse directo e pessoal. Esse pedido de condenação pressupõe a própria legitimidade para requerer a prática do acto. Na base desse pedido deve estar a prévia apresentação de um requerimento que tenha constituído a Administração no dever de decidir e, portanto, a legitimidade do autor apresentar esse requerimento.

O artigo 73.º CPTA reconhece legitimidade a determinadas pessoas e entidades para pedirem a declaração da ilegalidade de normas emanadas no exercício da função administrativa ("normas regulamentares").

Por último, o art.77.º refere três categorias de pessoas e entidades legitimadas a pedir a declaração de ilegalidade por omissão se normas regulamentares necessárias para exequibilidade de determinados actos legislativos.

No âmbito deste trabalho cumpre agora analisar a legitimidade passiva no Contencioso Administrativo (art.10.º CPTA). Também o critério é o da relação material controvertida - o autor deve demandar quem alegadamente estiver colocado em posição contraposta à sua.

Resulta do art.10.º/2 que, em regra, as acções que sejam intentadas contra entidades públicas a legitimidade passiva corresponde à pessoa colectiva e não a um órgão que dela faça parte. E, quando esteja em causa a conduta de um órgão do Estado a legitimidade passiva é do Ministério a que o órgão pertence.

O Prof. Vasco Pereira da Silva é crítico quanto a esta opção legislativa - pessoa colectiva como sujeito processual paradigmático. Pois, actualmente, a noção de pessoa colectiva não está em condições de funcionar como único sujeito de imputação de condutas administrativas devido à complexidade da organização administrativa e também ao facto de as actuais relações administartivas serem multilaterais. Contudo, na prática, o Professor admite que, através da referência que é feita ao órgão no art.10.º/4 e ao determinar não existir qualquer irregularidade quando se verifica a indicação do "órgão que praticou ou deveria ter praticado o acto" (art.º78.º/3), o legislador consagra a possibilidade de tanto as pessoas colectivas como os órgãos administrativos serem sujeitos processuais.

No meu entendimento, o legislador não "abre" essa possibilidade, apenas por as pessoas não terem sempre acesso qual a pessoa colectiva em causa, mas apenas o órgão que praticou ou deveria ter praticado o acto, se verifica essa consagração - a sua ratio é a economia processual.

Actualmente, existe uma dimensão multilateral das formas de actuação administrativa, ou seja esta actuação implica o envolvimento de diferentes particulares e entidades adminstrativas com interesses diferenciados. Assim, coloca-se a questão de saber se, num processo intentado pelo autor contra uma entidade administrativa, podem e devem ser chamados os outros sujeitos da relação multilateral. Tendo consciência da necessidade dessa intervenção o legislador consagrou os arts. 12.º, 48.º e 57.º CPTA.

Prevê-se a possibilidade de litisconsórcio voluntário (activo e passivo) nas situações previstas no art.12.º. Por sua vez, o art.48.º trata de processos de massas, isto é, envolve uma multiplicidade de sujeitos mas apenas existe uma relação jurídica material. Também o art.10.º/8 se enquadra na lógica das relações multilaterais. Em todos esses preceitos prevê-se a abertura do processo, permite-se que os sujeitos dessa relação intervenham para protecção conjunta dos respectivos direitos.

Em suma, este pressuposto processual (legitimidade) assegura que, no Contencioso Administrativo, haja uma efectiva tutela a quem quer que se lhe dirija - não apenas os indivíduos em defesa dos seus direitos e interesses, mas também outros sujeitos que de alguma forma sejam afectados pela prática ou omissão do acto administrativo.

Bibliografia:

"A justiça administrativa", José Vieira de Andrade

"O novo regime do Processo nos tribunais administrativos", Mário Aroso de Almeida

"O contencioso administrativo no divã da psicanálise", Vasco Pereira da Silva

(PS: não foi possível fazer como comentário à tarefa)

Liliana Almeida, sub 3, n.º16728

Sem comentários:

Enviar um comentário